Michael Ballhaus fala sobre o cinema alemão e de suas histórias com o diretor Scorcese, com quem tra
Mito da fotografia no cinema, responsável pela arquitetura visual de filmes cultuados como Os Bons Companheiros (1990) e A Última Tentação de Cristo (1988), prestigiado com três indicações ao Oscar, o alemão Michael Ballhaus receberá nesta quinta-feira do 66º Festival de Berlim um tributo para celebrar seus 80 anos de vida e cerca de seis décadas de uma carreira movimentada à força de uma centena de filmes. Hoje, com a visão comprometida, ele já não consegue mais trabalhar e nem mesmo compreender na plenitude o que vê na telona. Mas seu currículo é de dar inveja a qualquer artesão da imagem, seja na recorrente parceria com Martin Scorsese, seja na colaboração que deu a mestres como Rainer Werner Fassbinder (de O Casamento de Maria Braun) e Francis Ford Coppola (em Drácula de Bram Stoker), Na entrevista ao seguir, ele fala de sua estética:
Qual é a missão artística de um diretor de fotografia?
MICHAEL BALLHAUS – É fazer com que os realizadores se lembrem de que, embora a palavra tenha seu valor, é pela imagem que as histórias devem avançar. Em Os Bons Companheiros, há uma cena na qual Ray Liotta leva Lorraine Bracco a um clube e entra pelos fundos, pela cozinha, para impressioná-la, mostrando que, por seu um gângster, ele pode desrespeitar as regras. Você não pode explicar isso com palavras. Até dá... mas soaria literatura, soaria artificial. Scorsese usa um texto em off que comenta a ação mas não a explica. A imagem é quem comunica tudo. E outra coisa: o diretor de fotografia deve fazer o cineasta se lembrar de que cinema se faz de emoção e não de estilo. Há emoções que são cerebrais. Há emoções físicas. E há as existenciais. Mas um filme só se sustenta de pé se puder mexer num nervo qualquer da nossa alma. E é a imagem que tensiona esses nervos.
Que tipo de conselho os fotógrafos mais jovens pedem ao senhor?
BALLHAUS - É muito difícil eu conseguir dar conselhos para as pessoas, porque eu sou um sujeito do pragmatismo e não da teoria. Mas eu diria que o diretor de fotografia é um parceiro de criação de um cineasta que deve saber ouvir, deve sempre tratar bem a todos no set, mas deve também, sempre que necessário, fazer valer suas ideias. Tem muito diretor que sabe o que quer e sabe fazer sua vontade ser compreendida por todos os colegas. Scorsese, por exemplo, é assim. Mas também diretor que não faz ideia de como viabilizar uma filmagem. Não se deve nunca perder o respeito pelo diretor. Mas também não se pode nunca desrespeitar o Cinema... a Imagem.
Qual foi o maior desafio de sua carreira?
BALLHAUS – Nenhum filme me trouxe tanta insegurança quanto Gangues de Nova York. Embora eu tivesse o Scorsese do meu lado, eu estava num espaço gigante dos estúdios Cinecittà, em Roma, trabalhando num cenário todo desenhado para reproduzir os EUA do fim dos anos 1800 com o máximo de detalhes. Não havia como errar a luz, pois a cenografia multicolorida logo denunciaria meu erro. E diante de mim estavam atores de um processo criativo muito intenso, como Daniel Day-Lewis e Leo DiCaprio, o que me demandava mais atenção ainda. Foi tenso.
Ali começou a parceria entre Leonardo DiCaprio e Scorsese. Como o senhor avalia o ator que ele se torno e que agora, com O Regresso, pode enfim ganhar o Oscar?
BALLHAUS – Antes é preciso reconhecer o quão extraordinário que O Regresso é, pelo requinte de suas imagens e o rigor de seus enquadramentos. Minha visão ainda não tinha se deteriorado tanto quando pude vê-lo e foi um encanto. O uso de luz natural em diversos momentos é de uma coragem singular. E Iñarritu teve a sorte de ter um ator igualmente corajoso a seu lado. DiCaprio é um ator perseverante que aceita os desafios com retidão e encara loucuras como a cena em que entra no corpo eviscerado de um cavalo para se aquecer. É rústico e belo aquele momento.
Foi fácil para o senhor se adaptar às câmeras digitais?
BALLHAUS – Meu filho... eu sou das antigas: película é que arte para mim. Respeito quem filma com digital. É da evolução natural. Mas eu não fico à vontade com a ideia de que um programa de computador possa corrigir um deslize meu. Antes, no 35mm, eu não podia errar. Era eu quem buscava a luz. E fora que a digitalização artificializou muita coisa. O uso do CGI (Computer Generated Imagery), no qual um ator interpreta para uma tela verde que depois será substituída por imagens, tira qualquer senso de realismo. Mas eu tenho 80 anos...
O senhor fotografou para o Scorsese sete vezes, incluindo Os Infiltrados, pelo qual ele ganhou o Oscar. Alguma vez vocês se estressaram?
BALLHAUS – Não há como se aborrecer com ele, não só pelo amor que Scorsese tem pelo cinema, mas porque ele fala por meio de imagens: cada instrução que ele dá, já é uma cena pronta, descrita em detalher. Agora... uma vez... em Os Bons Companheiros, há uma cena na qual Samuel L. Jackson, ainda no início de carreira, antes da fama, toma um tiro. Na hora que filmamos, espirrou sangue para todo lado, como é típicos dos filmes de Scorsese, pois a violência é a representação dos males que ele enxerga no mundo. Mas aí, com o plano já rodado, ele e o cenógrafo começaram uma discussão de que havia miolos de menos espalhados junto ao sangue, uma vez que a cabeça do bandido vivido por Samuel deveria ter explodido. Aquilo me fez mal.
O senhor começou a fazer cinema no momento em que o chamado Novo Cinema Alemão, no qual gênios como Fasbinder, Werner Herzog e Wim Wenders foram revelados. O que mudou no cinema alemão desde então?
BALLHAUS – A consciência política desapareceu. Essa foi a maior mudança. E não só na Alemanha. Nos anos 1960 e 70, estética e ética eram uma coisa só: um plano era uma escolha política e as histórias que filmávamos transpiravam inquietação. Hoje, a Alemanha praticamente só emplaca comédias. É bom que se faça esse gênero. Eu mesmo filmei muitas. Mas falta consciência.
Via Omelete.